Sunday, June 05, 2005

Duas Curitibas

Curitiba foi, não é mais. A frase encerra um conto de Dalton Trevisan, Curitiba Revisitada. Também encerra a peça Pico na Veia, baseada em textos dele, que terminou temporada nesse fim de semana no Guairinha. O texto detona a cidade das velhinhas tiritando de frio, do marketing de acrílico azul, dos 50 buracos por pessoa em cada calçada. E diz que a cidade já era.

Mas a frase também é verdadeira em um sentido diferente. Não histórico, geográfico. Se reparar bem Curitiba não é mais uma cidade só. São pelo menos duas, bem diferentes, territorialmente inclusive. A fronteira existe, embora seja tênue. Suas marcas são as classes sociais, a falta de dinheiro, o tipo de gente que habita de um e outro lado.

Quando falamos da Curitiba fria, de gente calada e de poucas palavras, por exemplo, estamos falando apenas de uma Curitiba. É a cidade antiga, do século 19, dos imigrantes europeus. É a cidade do Positivo, das livrarias, dos shoppings, do cinema. Aquela que aparece na tevê.

Não sabemos da outra, eu e você que me lê aí na internet. Dificilmente cruzamos a fronteira. Qual foi a última vez que você visitou a Vila Leão? O Tatuquara? O Osternack? Você sabe onde fica o Xapinhal? E no Pantanal, você sabe o que acontece? Tem ainda a Vila Verde, a Vila Nossa Senhora da Luz, o Autódromo, a Vila Audi, Yasmin, tem a Ilha do Mel.

E só para falar pouco. Na verdade, essas vilas no mapa fazem parte da mesma Curitiba que o Centro, o Jardim Social, o Batel, o Alto da XV. Mas a diferença é grande. E não é só de dinheiro.

Cidade fria? Vá lá para ver. É outra gente, acostumada a viver em grandes aglomerados, dependentes um do outro. Gente mais simples e de mais fácil trato. Europeus? São quase todos do moreno para o preto. Tem os brancos também, mas pergunte a eles de quem descendem.

Somos uma cidade dividida. A fronteira passa em algum lugar entre o Portão e o Pinheirinho. Em algum canto entre as Vilas Oficinas e o Autódromo. Separa O Cabral do Santa Cândida e o Campo Comprido da Cidade Ïndustrial. A velha Curitiba está ilhada, no meio de uma periferia que tem dez vezes seu tamanho, dez vezes sua gente.

E mesmo assim continuamos a falar de Curitiba pensando naquela espécie de Lapa do século passado. A cidade é viva, pulsa em nosso redor, mas não vemos. O arame da ópera e a estufa do Botânico botaram um véu na cidade que nos cerca.

Aí vêm falar em guetos, onde vivem os pobres das cidades. Quê? Gueto é o nosso. A cidade de verdade está fora de nosso perímetro, do nosso mundinho de gente que toma banho todo dia na água aquecida pelo gás. Somos um quarto da cidade, se muito. Não ousamos passar para o lado de lá, por medo, simplesmente, ou por desinteresse.

Quem passa de carro pela Vila das Torres pensa na favela, fecha o vidro do carro e faz muito bem. É um dos poucos pontos em que as duas cidades se cruzam. É um posto avançado da Curitiba atual na Curitiba antiga. Assim como há postos avançados nossos fora de nosso território – condomínios fechados, vilas caras no subúrbio. Por sorte, o percurso até o centro é facilmente coberto pelas vias rápidas.

Somos duas cidades e não sabemos. Temos medo uns dos outros. O crime acontece mais na Curitiba periférica. Lemos notinhas nos jornais. Crime no Tatuquara, na Terra Santa, na Cidade Industrial. Tem mais gente lá, é normal que tenha mais crime. Ainda mias com a pobreza batendo à porta.

As matérias maiores, porém, o jornal reserva para quando pegam alguém do nosso lado. Batel? É matéria de alto de página. Invadiram nosso gueto, nosso reduto, é preciso resistir. Chamem a polícia, a política, reforcem os limites.

Sei lá. Temos 1,7 milhões de pessoas dentro dos limites da cidade. Quantos desses têm a nossa vida? Quantos estão excluídos, chegando todo o dia nos bairros distantes em busca de algo que não podemos, mesmo quando queremos, dar?

Não é pessimismo. É que já corri essa cidade na minha profissão, e vi o outro lado da fronteira. É nosso dever unir os dois lados. Mas como? Fica para alguém mais inteligente do que eu responder.